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O EXERCÍCIO DO CAOS - THE EXERCISE OF CHAOS

O EXERCÍCIO DO CAOS, CINEMA ESSENCIAL

Por José Geraldo Couto

O Exercício do Caos é o que se pode chamar, sem medo de errar, de “filme de autor”. Por qualquer critério.

Do ponto de vista teórico ou abstrato, é de autor porque traduz em narrativa audiovisual uma visão pessoal do cinema e da vida. Mas é de autor também num sentido muito concreto: Frederico Machado escreveu, dirigiu, produziu e fez a fotografia do filme.

Definido por seu autor como um “suspense existencialista”, O exercício do caos tem um entrecho exíguo: no interior do nordeste (Maranhão, mas isso só sabemos por informação extrafílmica), um homem de meia-idade (Auro Juriciê) e suas três filhas trabalham num roçado e engenho de mandioca, sob o domínio de um capataz mal-encarado (Di Ramalho) e de um proprietário ausente. Pelos escassos diálogos, ficamos sabendo que a mãe das meninas (Elza Gonçalves) desapareceu anos atrás, talvez sequestrada por um mítico forasteiro vestido de branco. Ela, a mãe, aparece diariamente à filha mais nova, como fantasma ou projeção.

Mais do que o enredo, porém, o que importa é a atmosfera criada, entre o real e o fantástico, naquele fim de mundo perdido no tempo. O que não é dito, o que está fora do quadro e do tempo da narração é tão importante quanto o que se mostra e se diz.

A encenação é de uma austeridade e um rigor quase ascéticos, e não por acaso o filme é dedicado a Robert Bresson. Mas ao contrário do mestre francês, que evitava toda música não diegética, ou seja, que não fosse produzida em cena, a música de Béla Bartok e Alfred Schnittke é essencial para arrancar o filme da descrição naturalista e alçá-lo à esfera do mistério e do mito. Há algo de Tarkóvski na gravidade metafísica de certos gestos e enquadramentos, no entanto sem nenhuma afetação ou pose.

A fotografia conduz com muita habilidade o contraste entre, por um lado, o mundo concreto e cotidiano da família, circunscrito a uma gama de cores não muito distantes da terra – o amarelo da iluminação elétrica precária, o dourado da luz cambiante do fogo, o marrom escuro da mandioca, o ocre das paredes, o moreno da pele das meninas e do pai – e, por outro, o espaço luminoso da mata e do lago de águas translúcidas. A passagem entre um território e outro equivale à travessia do real ao imaginário, da opacidade à transparência.

Mas ainda estamos distantes de uma descrição minimamente fiel desse filme em que pouco é dito e muito é sugerido. A ênfase na pele e na respiração das personagens, a recorrência de instrumentos cortantes em ação, tudo sugere a iminência do sexo e da morte, ambos sempre à espreita em cada fotograma.

Esse drama em que pouca coisa acontece diante da câmera é atravessado por todos os desastres humanos possíveis: incesto, assassinato, adultério, suicídio. No “real” ou no imaginário, quem vai saber? No cinema, e é isso que importa.

SÓLIDA ABORDAGEM EXISTENCIALISTA

Por João Carlos Sampaio

 

O drama O Exercício do Caos, estreia em longa-metragem do produtor, roteirista e diretor Frederico Machado, pertence a uma linhagem de filmes cujas buscas narrativas não se resumem a contar uma história, têm mais a ver com a proposição de uma elaboração audiovisual orgânica, que fale sem o verbo.
A voz humana rareia nesta abordagem sobre um pai matuto, vivido pelo ator Auro Juriciê, que mora recluso com suas três filhas, encarnadas pelas garotas Thalyta Sousa, Isabella Sousa e Thayná Sousa. Em tempo presente a mãe não está mais ali, aparece somente nas lembranças (Elza Gonçalves).
A trama se organiza em blocos, batizados de Exercício, Limbo e Caos. Neles, as lentes atentas se dedicam muito aos personagens, revelando olhares, pequenos gestos, capturando a mecânica de seus corpos no mundo.
Não é que a encenação aposte na dilatação das ações, mas sim numa construção de tempo, que respeita o respiro dos personagens, arrastando o espectador para perto deles. Tanto assim que o estofo da psicologia de personagem se estabelece aqui pela insistência em olhar.
O que se vê é um núcleo familiar incompleto, assombrado pelo fantasma de quem se foi e, depois, pelo espectro de um capataz (Di Ramalho), que ronda o espaço sagrado do lar, exercendo sobre o pai uma autoridade que, às vezes amedronta, noutras simplesmente sufoca.
As grandes ameaças, entretanto, não estão exatamente do lado de fora, mas na própria clausura dos personagens. São eles entes fragilizados pela sisudez do patriarca e pela labuta física incessante do campo, mas também por suas próprias questões íntimas, suas carências e sua espera por mudanças.
Expostos à convivência e sua dinâmica de engrenagem de moenda, só resta o torpor de se deixar triturar ou a fuga pela mata do inconsciente, com todos os estímulos visuais e sons, que Frederico Machado vai tecendo com sabedoria.
O rigor da construção cênica, suas opções de enquadramento, de ambientação sonora (e trilha), soma-se a uma montagem que favorece a contemplação, criando um sólido amálgama para esta jornada existencialista, ao mesmo tempo tão arrebatadora e singela. Uma estreia das mais promissoras.

O EXERCÍCIO DO CAOS - AS FOLHAS QUE SE MOVEM

por Marcelo Miranda

 

Frederico Machado dedica O Exercício do Caos ao cineasta francês Robert Bresson. Especialmente em sua primeira parte, o filme deve muito ao olhar de Bresson, não só na abordagem e atmosfera, mas especialmente na maneira como enfoca o olhar (da câmera e dos personagens) e suga tudo mais que possa clamar outro tipo de atenção. A austeridade está nos corpos combalidos, nas máquinas de moer mandioca, nos movimentos humanos repetitivos, no suor sensual, na mata, na poeira – enfim, na “maneira visível de falar” expressa nos corpos e no mundo ao redor, para ficarmos num conceito do próprio Bresson no livro Notas sobre o Cinematógrafo (Iluminuras, 2005).

O rigor com que O Exercício do Caos desenvolve sua linguagem delimita um tipo de controle (humano e mecânico) que o filme logo tratará de dissolver – dissolução que se dará apenas dentro do quadro, nos acontecimentos em cena, pois, do lado de fora, na construção, Frederico Machado continuará o artífice onisciente desse universo em contínua mutação. “É o cosmos, de fato, que se manifesta no encontro – isto é, o mundo, mas organizado pelo homem (cosmos designa o contrário de caos)”, escreve Jacques Aumont sobre o cinema de Bresson em As Teorias dos Cineastas (Papirus, 2004).

 O filme se articula em três segmentos (“Exercício”, “Limbo” e “Caos”), como uma peça musical ou um poema de estrofes. Cada uma das partes amplia um pouco mais a construção da anterior. A soma gera um constante efeito de estranhamento, no qual a “realidade” semidocumental dos primeiros minutos do filme se transforma aos poucos na irrupção metafórica e espiritual da segunda metade. A ambientação rural de O Exercício do Caos, emoldurada por vegetação verde, plantações, estradas e riachos, é corporificada na intensa utilização desse espaço como organismo orgânico e mutável – ora sufocando os personagens com seus mistérios incognoscíveis, ora representando, pela paisagem exterior, o íntimo mais interior desses mesmos personagens.

As “folhas que se movem” de O Exercício do Caos remetem o filme a esta percepção essencial de Georges Méliès em 1895 do que seria um cinema ainda por existir, aproximando-o de outros realizadores (Andrei Tarkovski, Terrence Malick, M. Night Shyamalan, Apichatpong Weerasethakul) cujas obras se formam a partir da ideia de que a natureza carrega em cada um de seus elementos um poder cósmico capaz de provocar a transcendência. Aumont, sobre Tarkovski (mas poderia ser de quaisquer dos outros nomes citados), nos diz: “A imagem é sempre concebida com dupla face: um lado representativo, que a puxa em direção ao mundo (e constitui sua garantia referencial), e um lado metafórico, que é sua parte propriamente criativa (e constitui sua garantia artística)”.

Por mais que atinja a universalidade do simbólico, O Exercício do Caos mantém a “garantia referencial” em cada enquadramento, pois jamais o filme escapole de falar de um núcleo familiar do interior do Maranhão. O equilíbrio entre a gama infindável de possibilidades de apreensão e a secura de um relato frontal em relação ao que registra permite ao filme respirar, a não recorrer a um palavreado desnecessário (pouco se fala, e o que se fala é sempre imprescindível) e a deixar que suas imagens e sons impregnem àqueles que se entregam à experiência de frui-lo. O Exercício do Caos, conforme definiu o já saudoso crítico baiano João Carlos Sampaio (a quem este DVD é dedicado), é “um sólido amálgama para esta jornada existencialista, ao mesmo tempo tão arrebatadora e singela”. Assim como o filme nos é apresentado em três partes, também é tripla a “jornada existencialista” proporcionada por ele: está nos personagens, está em Frederico Machado e está, principalmente, em cada espectador.

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